Vereda do Grifo: Um Conto das Terras Meridionais

Por Marcus Polidori

É mágico retornar aos domínios da fantasia, de volta aos tempos em que as tardes e as noites eram preenchidas por dados rolantes, mapas desenhados à mão e personagens épicos, que saíam das fichas de papel para ganhar vida na imaginação. Este conto, Vereda do Grifo, surge como uma pausa nostálgica para mim, um respiro na contemporaneidade frenética.

Como leitor e autor habituado a narrativas urbanas, decidi sair da zona de conforto e explorar a nostalgia das sessões de Dungeons & Dragons com os amigos de infância, mesma época em que as palavras de autores como Robert E. Howard e J. R. R. Tolkien se tornavam portais para reinos inexplorados.

Influências de R. A. Salvatore, Ed Greenwood e Crônicas de Dragonlance, entrelaçadas com lembranças de The Elder Scrolls V: Skyrim, também moldaram cada linha deste conto. Para mim, foi um retorno às origens.

Ao seguir Arturo Sombravento, Elara Tormentaveloz e Hawk Coração Grisalho, sinta não apenas a narrativa em si, mas a essência das tardes longas, da camaradagem de grupo e do vislumbre emocionante de mundos desconhecidos.

Aventure-se, leitor! Que Vereda do Grifo seja seu portal para a magia e o encanto que habitam as Terras Meridionais!



VEREDA DO GRIFO

Um conto das Terras Meridionais


 
Arturo Sombravento respirou fundo.

Na carroça do mercador, ele contemplava o verão sobre as Terras Meridionais. O ar espesso, impregnado pelo odor da relva e dos cavalos, preencheu seus pulmões. Seu corpo, envolto em tecidos negros, exsudava sob o céu azul, sentindo o eco das rodas e ferraduras na estrada pavimentada.

Ao longo do trajeto, árvores farfalhavam, cada folha dançando em harmonia com o cântico dos pássaros. Os regatos distantes, com seus murmúrios caudalosos e reflexos cintilantes, conferiam um sabor de infância à manhã saturada de expectativas, enquanto o sol brincava sobre as águas.

— Estamos quase lá, jovem mago — disse o mercador, com um sorriso enrugado, guiando as rédeas da carroça. — Já posso sentir as vibrações das ruas, o pulsar do comércio. Há beleza e perigo em igual medida depois daquela ponte. E as melhores tavernas da Costa Vorpal!

Arturo, fechando seu velho e pesado grimório, olhou para a construção arqueada sobre o rio Pelegrino.

— Certamente, mercador. — Pausa. — O feitiço da pontualidade se perdeu. Mas o encanto da cidade aguarda.

Deixando para trás os campos dourados e as colheitas ondulantes, a carroça cruzou a ponte de alvenaria, revelando um novo cenário. Torres de pedra e telhados de ardósia emergiram no horizonte, prometendo uma experiência distinta da tranquilidade rural que os acompanhara até aqui.

Imerso em devaneios, Arturo ansiava pelas maravilhas e mistérios que o aguardavam na cidade de Vereda do Grifo.



Não tardou para que ele adentrasse a taverna. Antes, entretanto, percorreu brevemente uma feira agitada, repleta de cores, vozes e perfumes  de especiarias. Cada barraca oferecendo uma miríade de produtos, desde tecidos vibrantes até pescados, frutas e ervas recém-colhidas.

Na praça central, havia um monumento: a majestosa estátua de um grifo de asas abertas e bico erguido. Sob o sol do meio-dia, o bronze brilhava, enquanto viajantes se detinham para admirar a escultura. Ao redor, árvores balançavam, seus galhos projetando sombras suaves no chão.

Arturo permitiu-se uma pausa, observando a cidade, o zumbido constante da feira competindo com o chilrear dos pássaros. Foi então que avistou a placa da Estalagem do Cavaleiro Harpista, prometendo bebida, comida e, quem sabe, uma cama confortável em meio ao tumulto urbano.

O primeiro piso da estalagem era uma taverna: um recinto de névoa e alarido, um santuário para almas destemidas e nômades. O salão cheirava a tempero, guisado e carne assada, e erva de fumo, e cevada. Raios solares atravessavam as janelas e a fumaça dos cachimbos, pintando o salão, revelando os intricados entalhes das mesas de madeira.

O mago mergulhou na agitação pulsante dos frequentadores, onde os zumbidos fervilhantes de diálogos dançavam com o tintilar de copos e pratos. Antes de se sentar, ele capturou a cadência de uma melodia festiva, dedilhada por um bardo virtuoso no rincão da taverna. O ritmo vibrante se entrelaçava com gargalhadas e exclamações, a melodia característica da vida urbana.

No balcão, o chiar das torneiras de cerveja abrindo competia com a música. A voz do estalajadeiro ressoava ao atender pedidos e saudar os fregueses assíduos. Com um aceno, Arturo solicitou uma bebida, ponderando se não era cedo demais para tal. Considerou rapidamente os efeitos de ingerir álcool de estômago vazio, mas a atmosfera animada da taverna o convenceu a desfrutar de um gole, mesmo que o sol ainda estivesse alto no céu. Ao receber o caneco cheio de cerveja, deslizou duas moedas de cobre pelo balcão, e o tilintar suave das moedas marcou o início de uma tarde promissora.

Enquanto saboreava a bebida, notou uma figura ruiva se aproximando do balcão com uma expressão séria. Uma mulher de orelhas pontudas e corpo esguio, vestida com elegância e praticidade em trajes verdes. Com cabelos avermelhados caindo em ondas suaves sobre os ombros, ela emanava uma aura de melancolia, seus olhos cinzentos cheios de histórias não contadas. Traços de beleza mestiça, uma mistura de graça élfica e determinação humana, que imediatamente atraíram sua atenção.

Com o coração palpitando e as pupilas dilatadas pelo fascínio, Arturo se aproximou, seus passos mesclando-se ao ritmo da música no ar.

— Você é Elara Tormentaveloz? — Um sorriso tenso. — A Matadora de Orcs?

Elara fez um gesto afirmativo.

— Sou Arturo Sombravento, o mago que respondeu ao seu chamado. Como posso auxiliar na sua missão?

— Ah, o mago — ela disse com uma estranha calmaria. —  Graças aos deuses você chegou! Há uma ameaça sombria se erguendo, e precisamos de suas habilidades arcanas. Venha se sentar comigo, vou lhe contar sobre a nuvem negra que paira sobre Vereda do Grifo.



Sentados à mesa diante de uma janela escancarada, onde uma brisa agradável trazia os murmúrios da cidade, Arturo e Elara desfrutaram do almoço composto por saladas frescas, purê de batata, torta de legumes e pão de ervas. O clima na Estalagem do Cavaleiro Harpista acalmou aos poucos.

Entre garfadas, Elara Tormentaveloz desfiou sua recente jornada. Há duas semanas, vindo do oeste através do Reino de Alandora (onde se aventurara em busca de artefatos mágicos), ela cruzou a fronteira do Reino da Costa Vorpal, cogitando alguns dias de descanso. No caminho para Vereda do Grifo, contudo, encarou uma emboscada orc. Resistindo corajosamente, a meio-elfa abateu a maioria, mas três espertos conseguiram escapar.

Determinada, Elara os rastreou até o Bosque de Mata-cavalos, onde avistou um acampamento orc. Mantendo a viagem rumo a Vereda do Grifo, procurou o auxílio de Hawk Coração Grisalho, um velho ladrão. Com destreza furtiva, Hawk infiltrou-se no acampamento e descobriu que os orcs eram liderados por uma feiticeira de nome Mystella.

Ademais, ouviu que Os Filhos de Ferrabraz, uma companhia mercenária, também estavam a soldo de Mystella, tudo por uma generosa quantia de ouro. Sob o comando da feiticeira, os orcs mantinham monstros cativos, peças fundamentais para a execução de um sinistro plano: instalar portais mágicos clandestinos na cidade e soltar as feras na próxima noite de lua cheia, visando criar a confusão necessária para a iminente invasão e ocupação orc.

— Mas a próxima lua cheia é hoje!

— Exatamente — disse Elara. — Por isso, você deveria ter chegado pelo menos dois dias atrás, na véspera do Feriado dos Presentes.

A tensão da situação pairou no ar enfumaçado da taverna, enquanto Arturo absorvia as revelações sombrias.

— Atrasado para o espetáculo, meu caro. — Uma voz rouca, encharcada de álcool, cortou o ar da taverna. — A confusão já está no centro do palco.

— Arturo, esse é o Hawk — disse Elara.

O velho pousou seu caneco de cerveja na mesa e estendeu a mão para um cumprimento.

— Muito prazer.

Hawk Coração Grisalho ostentava um bigode ralo e uma barba cinzenta, delineando seu rosto áspero. Os cabelos grisalhos, semilongos, começavam a ceder à calvície, revelando duas entradas que emolduravam uma testa cheia de preocupações. Rugas profundas denunciavam uma vida vivida, enquanto uma barriga robusta, resultado de uma rotina de taverna em taverna, destacava sua apreciação pelas melhores bebidas das Terras Meridionais.

— Garoto, descanso é um luxo que não podemos nos dar agora. Os portais não vão se localizar sozinhos. Mystella está tramando algo sujo, e precisamos encontrar essas passagens antes que Vereda do Grifo vire um verdadeiro inferno.

Um breve silêncio.

— Sinto muito por você, meu querido. Sei que a viagem foi cansativa. — Elara tomou um gole do caneco de Hawk. — Mas ele tem razão. É hora de agir.
 

Guiado por Hawk e invocando feitiços de detecção, Arturo Sombravento passou a tarde inteira explorando Vereda do Grifo em busca dos portais. Iniciaram a investigação nos territórios frequentados pelos Filhos de Ferrabraz. E o primeiro portal foi descoberto em um casebre deserto, envolto por lendas macabras, próximo à saída da cidade.

Dentro da construção, as sombras dançavam nas paredes gastas enquanto Arturo e Hawk avançavam cautelosamente. O cheiro de mofo e madeira velha pairava, criando uma atmosfera enigmática e opressiva.

Erguendo a mão, Arturo murmurou palavras arcanas, e uma luminescência azul suave iluminou o ambiente. A luz revelou detalhes obscuros: móveis quebrados, estantes e livros arruinados, teias de aranha nos cantos e um assoalho rangente que escondia segredos enterrados.

Com olhar astuto, Hawk apontou para uma área no centro do cômodo.

— Aqui, garoto. Tente aqui.

Arturo assentiu e concentrou-se. Invocando conhecimentos arcanos, lançou novamente um feitiço de detecção. O ar distorceu-se ao redor do ponto indicado, revelando uma discreta abertura dimensional.

— Encontramos — anunciou Arturo, sua voz ecoando no silêncio.

Ao se aproximar, uma sensação de frio percorreu sua espinha.

— Magia sombria — murmurou para Hawk. — Precisamos dissipá-la antes de fechar o portal.

Hawk assentiu, empunhando uma adaga afiada.

— Faça o que precisa ser feito, mago. Eu fico de olho.

Arturo respirou fundo, entoando palavras de dissipação e guiando a mão na direção do portal. O ar estremeceu e a temperatura aumentou enquanto a magia escura resistia. Gotículas de suor formaram-se em sua testa, mas ele manteve-se firme, determinado a quebrar a influência maligna.

A sala chocalhou quando o feitiço alcançou seu ápice. O portal, pulsante de energia negra, começou a se dissipar como fumaça ao vento. Um suspiro de alívio escapou de Arturo enquanto o último vestígio sombrio desaparecia.

Hawk aplaudiu, admirando a destreza do mago.

— Bom trabalho! Poderíamos voltar agora mesmo para a taverna e comemorar. Mas, lamentavelmente, temos mais desses para encontrar.
 

Mais tarde, seguiram para a  rua da feira, onde a agitação diurna cedia espaço ao silêncio noturno. O crepúsculo tingia o céu com tons de laranja e roxo enquanto a dupla se movia pelas vielas da cidade. No local, agora tranquilo e deserto, Arturo notou a entrada de um beco estreito, repleto de sombras e monturos, estendendo-se para fora da visão.

— Deve ser aqui, Hawk. Vamos procurar algo fora do comum.

Confiante na perícia do mago, o velho assentiu. Dentro do beco, apenas a luz tênue de algumas lanternas distantes iluminava o caminho. Entre barris quebrados e outros detritos, havia um objeto plano, com bordas simétricas, apoiado contra a parede e coberto por um tecido grosso.

— Bastante suspeito, não acha? — Arturo sorriu para Hawk.

Juntos, removeram o tecido, revelando um quadro que retratava uma linda paisagem bucólica. Havia um encanto de ocultação, mas o feitiço de detecção de Arturo indicou a presença de uma fenda dimensional.

— Pelas barbas de Alkymor! — disse Arturo. — Estão mesmo espalhando essas armadilhas pela cidade.

— Não vamos perder tempo. — Hawk franziu a testa, examinando atentamente a imagem. — Quanto mais rápido terminarmos, melhor.

Arturo concordou e começou a recitar as palavras de dissipação. O feitiço se desdobrava com elegância, mas uma voz ressoou no beco escuro.

— O que estão fazendo aí?

Três sombras emergiram na entrada do beco. Eram mercenários humanos, silhuetas delineadas pela luz da rua, como espectros da  noite. Enquanto Arturo intensificava seus encantamentos, Hawk sacou uma de suas adagas, pronto para o combate.

— Pensam que podem salvar esta cidade de merda?

— O que é isso atrás de você? — disse Hawk, estendendo o braço, como se apontasse para um dos oponentes.

De repente, o mercenário tombou para trás com uma adaga cravada na testa. Os outros dois arregalaram os olhos, surpresos por não terem percebido o curso da lâmina. Imediatamente, fizeram menção de atacar.

— Então é isso? — Hawk mostrou as mãos vazias. — Vão mesmo investir contra um velho desarmado?

— Seu filho da puta! — berrou um deles, avançando com uma espada longa em mãos.

Num piscar de olhos, Hawk já segurava outra adaga. Bloqueou parcialmente o ataque, o som do aço contra o aço ecoando pelas paredes. Girou para o lado, acompanhando o movimento das faíscas. Subitamente, encostou suas costas nas costas do oponente, encarando o outro mercenário.

Quando ambos tentaram atacar ao mesmo tempo, Hawk se esquivou, permitindo que se atingissem mutuamente.

O portal, ainda pulsante, exigia a atenção imediata de Arturo. Com um último gesto, a fenda se foi, esvaneceu, sumiu. A rua da feira, agora silenciosa novamente, testemunhou a vitória momentânea dos heróis. Então, com a adrenalina da batalha diminuindo, Arturo e Hawk trocaram olhares sérios.

— Você está bem?

— Não muito. — Hawk respondeu, ofegante. — Acho que estou velho demais para isso.

Enquanto recuperava o fôlego, curvado, apoiando as mãos no joelhos, observou os três cadáveres no chão.

— Mas eles com certeza estão piores!

— Certamente.

Riram.



Decidiram, por fim, explorar os subterrâneos, onde as sombras  ganhavam vida. Primeiro, desbravaram vielas estreitas, habitadas por mendigos e ladrões que temiam ou respeitavam Hawk. Depois, escadarias desgastadas, guiando-se pela tênue luz das lanternas furta-fogo. Enquanto desciam, o murmúrio distante da cidade se desvanecia feito um sonho meio esquecido.

Ao longo do trajeto, Hawk compartilhava segredos sobre a intrincada rede de túneis que escondia o refúgio dos Filhos de Ferrabraz. Sussurrava sobre os segredos enterrados na escuridão sob as fundações da cidade.

— Aqui, meu amigo, é onde a verdadeira batalha começa. Os subterrâneos escondem mais do que os olhos podem ver.

— Que Belenos ilumine nossos caminhos! — disse Arturo, clareando a passagem com a luz da lanterna. — E Elara? Onde ela está agora?

Hawk lançou-lhe um olhar sério.

— Partiu rumo ao acampamento orc. — As palavras do ladino ecoaram pelo túnel; notando isso, ele diminuiu o tom da voz. — Caso consigam atravessar o portal, ela fará o mesmo caminho, vindo sorrateiramente por trás deles.

— E se conseguirmos fechar o portal a tempo?

— Nesse caso — sussurrou —, nos reuniremos com ela no acampamento para pôr fim aos orcs.

Persistiram na exploração dos túneis úmidos, seguindo as pistas deixadas pelos mercenários. O som de seus passos reverberava nas paredes de pedra, criando uma sinfonia peculiar no submundo da cidade.

À medida que se aprofundavam nos corredores, Arturo sentiu vibrações arcanas, indícios de encantamentos e rituais ocultos. A tensão crescia a cada passo, alimentada pela incerteza do que aguardava nas sombras.

— Creio que estamos perto do covil deles — disse Hawk, com a voz contida pela atmosfera densa. — Oculte a luz da lanterna.

Ambos fecharam as portinholas de suas lanternas furta-fogo. Vozes e ruídos metálicos ressoavam à frente. Os mercenários estavam trabalhando. Ao dobrar uma esquina, depararam-se com uma sala ampla, iluminada por tochas e velas bruxuleantes. Havia estantes, barris, caixotes de madeira, baús. No centro, uma mesa coberta de mapas e pergaminhos.

Hawk apontou discretamente.

— Lá estão eles.

Os Filhos de Ferrabraz, agora compostos por nove almas, entre humanos, um anão, um halfling e dois tieflings, afiavam suas lâminas e mantinham uma conversa exaltada. No ponto mais profundo do salão cavernoso, um portal pulsava com energia sombria, como se fosse devorar o mundo. O ar estava pesado e abafado, e uma sensação de antecipação pairava no ambiente.

— Se os orcs vierem por ali. — Hawk murmurou, observando o portal. — Vamos dar boas-vindas a eles.

De súbito, a câmara subterrânea estremeceu, e a fenda dimensional exalou uma lufada de vento nauseabundo. Velas se apagaram e papéis voaram da mesa, enquanto uma garrafa de rum encontrou o chão, estilhaçando-se. Os mercenários, instintivamente, desembainharam suas armas.

Então houve um longo silêncio.

Do portal, não emergiu uma horda de orcs. Em vez disso, surgiu algo muito mais sinistro. Uma esfera de carne flutuante, do tamanho de um javali, com uma bocarra repleta de dentes afiados, um olho central imponente e inúmeros tentáculos, cada um terminando em um pequeno olho.

— Observador! — alguém bradou.

A criatura moveu-se, seus olhos multifacetados fixando-se nos mercenários surpresos. Os tentáculos, sibilantes, quebraram a tensa quietude, serpenteando pelo ar e disparando rajadas de luz de cada globo ocular.

O caos se instalou.

Pelos subterrâneos, ecoaram bravatas e gritos de pânico. Os mercenários lutavam desesperadamente contra a aberração. O Observador, impiedoso e ávido por destruição, rapidamente mostrou sua eficiência terrível. A mandíbula abocanhava e despedaçava, despedaçava e abocanhava. Os raios mágicos paralisavam, arremessavam, petrificavam e desintegravam.

O odor de sangue e medo misturou-se ao cheiro das tochas e paredes úmidas. Todos os ataques eram fúteis diante daquela criatura de pesadelos. O Observador ensinava aos mercenários o verdadeiro significado do horror.

Testemunhando a carnificina, Arturo e Hawk trocaram olhares. Um dos raios, por acaso, atingiu a fenda dimensional, dissipando a magia que a mantinha aberta. Com o portal agora selado, a sala mergulhou em um parco silêncio, quebrado apenas pelos gemidos agonizantes dos moribundos no chão.

Então o Olho Que Tudo Vê se virou para eles.



Arturo, com os olhos faiscantes de magia, impôs a mão direita e entoou as palavras de um antigo encantamento. Não nutria expectativas de sucesso; afinal, toda magia falha diante do Olho Que Tudo Vê. Entretanto, uma explosão resplandecente envolveu a monstruosidade, cegando-a.

A aberração retorceu-se, rugindo em sua súbita escuridão. Enfurecida, respondeu lançando seus feixes de luz onde eles estavam. Antevendo, contudo, o ataque da criatura, o ladino e o mago deslocaram-se a tempo.

Hawk, percebendo a oportunidade, deslizou feito uma sombra, sua adaga cintilando na penumbra. Com a precisão de um predador, avançou em direção ao olho central do Observador. Mas a criatura, sentindo sua aproximação, entrelaçou os tentáculos para bloquear o ataque. A lâmina, então, decepou um apêndice. Um urro demoníaco de agonia ecoou nas profundezas.

O mago, com semblante sombrio, mantinha seu domínio sobre o feitiço, e a cegueira mágica persistia. O Observador, sangrando e privado de visão, debatia-se desesperadamente. Os gritos abafados reverberavam nas paredes de pedra, criando uma cacofonia de tormento.

Hawk, imperturbável, prosseguiu seu assalto, dançando ao redor da aberração com agilidade mortal. Cada golpe encontrava uma brecha na defesa do monstro. A sala subterrânea estava toda mergulhada no caos, com o som metálico do aço perfurando o ar e os uivos agonizantes da criatura.

A batalha desdobrava-se feito uma dança selvagem entre a magia de Arturo e a destreza de Hawk. A cada investida, o Observador enfraquecia, seus tentáculos caíam, ou serpenteavam descontroladamente.

Finalmente, em um último ataque decisivo, Hawk afundou sua adaga no olho central, o ponto mais vulnerável do monstro. Fez-se um silêncio tenso quando a aberração, derrotada e mutilada, desabou no chão de pedra.

Arturo, respirando pesadamente, deixou que o encantamento se dissipasse. A luz revelou o quadro sombrio da vitória, com o Observador caído, e Hawk, erguendo sua adaga manchada de sangue. Era uma silenciosa celebração da conquista nas entranhas sombrias da cidade.

O mago examinou o cadáver da criatura e olhou para Hawk.

— Isso não deveria ter funcionado.

— Eu sei — disse o ladino, recuperando o fôlego. — Nenhuma magia prospera diante da visão dessa criatura.

— Exatamente.

— Vocês, magos, geralmente são inúteis contra esse tipo de ameaça. — Pausa. — Mas eu tenho uma boa ideia do que pode ter acontecido.

— Estou ouvindo.

Arturo aguardou pacientemente. Hawk puxou uma cadeira de madeira, caída no chão, e sentou-se.

— É a visão do olho central que interfere na magia — ele continuou, limpando a adaga em um andrajo. — Dizem que há um veneno, muito potente e igualmente raro, capaz de inibir esse poder dele.

— Um veneno?

— Sim! — O velho levantou-se. — E eu aposto que foi isso que Mystella usou para mantê-lo em cativeiro.

O mago olhou para os corpos dos Filhos de Ferrabraz.

— Vuldur, Senhor da Passagem, conduza essas almas para a paz eterna, e que a morte seja apenas uma transição serena para um reino além do nosso.

— Não me diga que além de mago... — Hawk apanhou duas algibeiras pesadas de moedas. — Você é um clérigo dos Nove Deuses.

— Eu? — Arturo, surpreso. — Infelizmente, não.

— Então pare de falar como um, garoto, e me ajude a recolher o ouro.

Quando os aventureiros emergiram das profundezas do submundo, seus olhos se aclimataram à luz prateada da lua cheia no céu estrelado. A luminescência lunar acentuou os horrores, desnudando uma atmosfera carregada de medo. Rumo à Estalagem do Cavaleiro Harpista, nuvens de fumaça ondulavam como aparições espectrais, sinalizando a desordem.

— Que Vartos sorria para nós! — bradou Hawk.

À medida que se aproximavam da agitação crescente, o cheiro acre de madeira queimada e o calor sutil do incêndio assaltavam os sentidos.

— Salvem-nos! — alguém gritou. — A estalagem está desmoronando.

As chamas dançavam com as sombras, enquanto lamentos distantes ecoavam. A rua, antes acolhedora, transformou-se em um teatro insano, com murmúrios da multidão ressoando como um coro enlouquecido.

Ao atravessarem a entrada chamuscada da estalagem, depararam-se com a visão de Elara Tormentaveloz, o rosto respingado de sangue, cercada por uma horda de orcs. A lâmina cortava o ar, acompanhada pelo rangido das mesas e cadeiras sendo viradas, criando um espetáculo caótico e visceral.



Diante da Elfa Mestiça, uma chama indomável ardia no peito de Arturo, diferente da que devorava a estalagem. Por um instante, só a respiração de Elara ecoava. Nada mais: somente ela. Era como se o mundo girasse lentamente ao seu redor. Ela olhou para ele, boca entreaberta, lábios úmidos e ofegantes, fios de cabelo ruivo colados pela transpiração nos cantos.

O mago vislumbrou um orc prestes a atingi-la por trás. Num ato reflexo, olhos focados, conjurou um feitiço de ataque, lançando uma rajada elétrica de sua mão estendida. O raio, como uma lança de luz, cortou o ar, passou sobre o ombro da meio-elfa e atingiu o inimigo em cheio no peito. O brutamonte foi arrebatado e arremessado violentamente contra uma parede já consumida pelas chamas. E tudo se acelerou novamente. Um naco de madeira flamejante despencou do teto, servindo como golpe de misericórdia.

— A hora é agora, garoto! — disse Hawk, desembainhando suas adagas. — Já temos fogo, sangue e tumulto. Só falta o silêncio e a chuva caindo para fechar o ato final com chave de ouro.

Cercada pelas brasas, Elara cortava, Elara desviava, Elara triunfava. À medida que a Matadora de Orcs avançava, os inimigos recuavam; à medida que o fogo avançava, a esperança recuava. O incêndio abraçou a madeira da estalagem, e as lágrimas do edifício caíram em chamas.

— Você está certo — afirmou o mago. — Acho que vocês dois conseguem dar conta dos orcs.

O velho franziu o cenho.

— O que pretende fazer?

— Vou cuidar do incêndio. — Respondeu com seriedade. — Vou trazer a chuva.

— Acredito em você.

Hawk abriu um sorriso largo e correu para o centro da taverna, movendo-se como um atleta, desafiando a própria idade. Quando se juntou a Elara na voragem da batalha, sentiu o cheiro da fumaça se misturando ao gosto amargo do desastre. Mas a guerreira gritava e golpeava, garantindo a glória.

— Pelas Terras Meridionais! — ela bradava. — Por Vereda do Grifo!

A intuição do velho ladino guiava seus movimentos, antecipando os ataques inimigos. Com a destreza de um felino, desferia golpes rápidos e precisos. Depois, habilmente, navegou pelos esconsos da taverna, encontrando oportunidades onde os outros só viam caos. Em suas táticas, havia um elemento escuso, um mistério que confundia e desorientava os adversários. O desdém em seus olhos era um escarro silencioso na face dos orcs.

— Drakhum! Drakhum! — clamavam os orcs, invocando o nome do Senhor do Inferno, o Deus das Masmorras e Dragões.

O mago, com as chamas rugindo em suas costas, abandonou a fornalha da taverna em direção às vielas silenciosas de Vereda do Grifo. As ruas não eram exatamente um refúgio, mas ele encontrou nelas um caminho para a salvação. Seus olhos podiam ser estrelas perdidas no céu escuro da noite, mas seus pés sabiam exatamente para onde ir.

Deixando para trás escombros, fumaça e o eco dos gritos, ele correu como um vento impetuoso. Os paralelepípedos, como testemunhas mudas, sentiram o ritmo apressado de seus passos. As sombras das casas, espectadoras curiosas, seguiram-no. A brisa acariciava seu rosto, trazendo consigo o ladrar distante dos cães e o frescor do rio Pelegrino.

À margem do flúmen, onde a cidade encontrava a natureza, Arturo contemplou o luar beijando as águas com seu brilho preteado. O reflexo da lua cheia era perfeito, como se fosse possível tocá-la com os dedos. A correnteza suave sussurrava segredos nos ouvidos do mago.

Arturo estendeu as mãos, entoando palavras místicas. Sua concentração aprofundou-se, canalizando energia para subjugar as águas.

— Rio Pelegrino, ouça o meu chamado! Rio que acaricia as margens de Vereda do Grifo, salve esta cidade! Eleve suas correntezas aos céus e derrame água sobre esta terra aflita!

Assim falando, uma porção de água do rio Pelegrino evaporou, formando nuvens densas sobre sua cabeça. Com maestria, o mago redirecionou as nuvens carregadas, guiando-as habilmente sobre o foco do incêndio no centro da cidade. Um estrondo ecoou pelos céus, seguido pelo som tranquilizador da chuva que começou a cair sobre as chamas vorazes.

Gotas frias apagavam o fogo, criando uma cortina de vapor que se elevava da cidade. A população, surpresa e aliviada, testemunhava o milagre, enquanto os destroços da estalagem suspiravam, lamentando a própria queda. A construção, enfim, cedeu ao sono da inexistência, deitando-se em um leito suave de cinzas. Suas memórias foram, então, levadas pelo vento.

O mago retornou, suas vestes encharcadas e cabelos gotejando sobre o solo úmido. Hawk e Elara o esperavam na rua. Ao vê-lo, a meio-elfa correu em sua direção, também com as roupas e cabelos molhados, gotículas escorrendo de suas orelhas pontudas.

— Você conseguiu! Você conseguiu! — exclamou, entusiasmada, abraçando-o. — Não fosse por sua rápida intervenção, perderíamos mais do que a estalagem. Você salvou vidas, Arturo.

— O mérito é de todos nós.

A tensão da batalha se dissolveu na chuva, dando lugar a uma camaradagem forjada pela vitória contra chamas e orcs invasores. O trio compartilhou um olhar de entendimento, reconhecendo a força que nascia da união.

— Garoto, devo admitir... — Hawk se aproximou, água escorrendo pelas rugas. — Este foi, sem dúvida, o banho mais épico que já tomei!

— Eu nem sabia que você tomava banho! — Elara se virou para ele, sorridente. — Deve ter sido uma experiência e tanto para você.

O velho, com um sorriso travesso, revidou:

— Olha só que milagre! — Fingiu examinar o rosto dela. — Parece que você finalmente conseguiu lavar essas orelhas.

Gargalhadas se espalharam na rua molhada.

— Bom, acho que merecemos um descanso. — disse Arturo, com um sorriso vitorioso. — Que tal  procurarmos um lugar para dormir, beber e traçar os planos da nossa próxima empreitada?

Assim, a chuva se retirou, e a lua cheia iluminou novamente Vereda do Grifo. A calmaria envolveu a cidade, testemunhando a amizade que brotava mesmo nos momentos mais desafiadores, como uma flor do campo em meio às tempestades de verão.

 

Diário de Elara Tormentaveloz:

Dia de Alkymor, 28 de solnascente de 1223 E. A

Fecho estas páginas com uma mistura de alívio e gratidão. Vereda do Grifo está a salvo, as sombras dissipadas, mas não sem sacrifícios. O último portal, insidiosamente oculto naquilo que deveria ser um refúgio seguro, abriu caminho para um confronto final que marcou nossos destinos.

A Estalagem do Cavaleiro Harpista, palco da batalha, agora é uma ruína silenciosa, seus corredores antes cheios de vida agora ecoam com a memória da bravura e da perda. Arturo, com sua magia controladora do clima, invocou a chuva e salvou Vereda do Grifo das chamas, mas não pôde preservar o lugar que tanto apreciávamos. O fogo, assim como a batalha, consumiu a estalagem, e seus escombros são como uma ferida no corpo da nossa empreitada.

Os orcs, em seus últimos suspiros, não deixaram pistas da feiticeira Mystella. No acampamento vazio, nenhum rastro dela. Mas havia ouro, e o ouro forneceu uma chance de renascimento. Uma doação para a reconstrução da estalagem, um ato simbólico de esperança emergindo das cinzas.

Juntos, eu, Arturo, e o velho Hawk, decidimos continuar nossa vida errante. Não apenas como aliados por necessidade, mas como amigos que escolhem compartilhar o peso do futuro. Calisporto, a capital do Reino da Costa Vorpal, nos aguarda, e com ela, o Festival dos Fogos de Artifício na véspera do Ano-novo. Novas aventuras se desenham em nossos passos, enquanto continuamos unidos pela superação, pela solidariedade, e por uma amizade nascida das batalhas.

As memórias de Vereda do Grifo permanecerão conosco, entrelaçadas na teia do destino. Em cada página deste diário, deposito não apenas relatos, mas fragmentos da jornada que moldou quem somos agora. Que os fogos em Calisporto celebrem não apenas um novo ano, mas também os laços que se fortaleceram nas chamas de Vereda do Grifo.

Que as estrelas continuem a guiar nossos passos.

Estrada dos Navegantes, Reino da Costa Vorpal

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